Depois de muito pensar sob a luz amarela do camarim, percebeu que sua vida fora dos palcos era algo incolor e residia longe do caráter de alguém.
Queria alma, mais do que isso: aromas, sentidos!
Então naquele dia chuvoso decidiu ir a loja de discos. Esquecera o guarda-chuva no rústico teatro e cedeu espaço para que os respingos rebelassem mechas aleatórias do cabelo ruivo.
Na volta, parou num café, se ajeitou no balcão e retirou quatro LP’s da sacola, fitando rapidamente as faixas e conferindo um a um, como um hábito automático.
Ao chegar no cubículo lotado de pôsteres, colocou Edith Piaf na vitrola e desembrulhou o pra extra forte pra viagem. Notou que algo roçara suas botas na entrada, e de relance pegou o envelope amarelo embaixo do rodapé.
Deus do céu! Eram fotos de dezesseis, talvez dezessete anos atrás, como mudara! E aquele rosto… Soava familiar, claro! Era Carlos, uma de suas aventuras joviais. Há quanto tempo não se encontravam no estacionamento daquele antigo drive-thru para mais uma balada escondida, regada de álcool e algo mais.
A foto anexava um bilhete: “No bistrô da Alameda 15, às 20h. Saudades, Carlos.”
O café esfriou, o disco emperrou, e Dara não se dava conta do que acabava de acontecer. Estava decidida a ir, mas lembrou do infortúnio: tinha apresentação. Frustrada, empurrou as fotos com o manuscrito pra debaixo do sofá e decidiu adiantar a parte doméstica.
Anoiteceu e o espetáculo iniciou-se em ponto. Paralelamente, Carlos espalhava a gota remanescente de perfume pelos pulsos e se preparava para sair de casa. Em meio ao foco de luz, Dara se perdeu em seus devaneios e esqueceu a deixa: no silêncio do ambiente desfez o penteado, caçou o sobretudo na chapelaria e saiu pela porta da frente, deixando os regalos e os paetês para trás, fitando no horizonte, logo ali na esquina, o maior espetáculo que estava por vir.
Que tal deixar os fios se deliberarem no vento, enquanto desconcertamos a rotina? O outro lado da rua pode não ser o limite, mas talvez seja o início de um enredo, seu enredo.
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